sábado, 17 de dezembro de 2011

[Tezuka Day] Metropolis: As disputas pelo poder da ciência

Capa da edição da NewPOP


"Mas será que não vai chegar o dia em que os humanos vão se desenvolver tanto a ponto de se extinguirem com sua própria ciência?" Com essa sentença, o personagem doutor Bell marca a temática central de uma das primeiras obras do Deus do Mangá, Osamu Tezuka: Metropolis, uma pequena história de ficção científica de inestimável importância para a formação da carreira do autor.

E com essa postagem o Across The Starlight marca sua presença no Tezuka Day, evento especial da blogosfera de animes brasileira em homenagem ao mais famoso mangaká de todos os tempos. Preparados para as intrigas e visões científicas de Metropolis?


-Introdução
O simbólico primeiro voo de Michi em Metropolis

Metropolis é uma das primeiras obras de ficção científica de Osamu Tezuka, publicado em 1949, refletindo uma visão do futuro de sua época de concepção. É tido como uma obra importante na carreira de Tezuka, por ser o ponto de partida de elementos que surgiriam posteriormente em outros trabalhos.

A história começa durante uma grande convenção de cientistas na futurística cidade de Metrópolis, na qual é descoberta a presença de estranhas manchas negras na superfície do Sol. Logo após o incidente, um dos cientistas, o Dr. Lawton, descobre que sua pesquisa de células sintéticas atinge o sucesso; porém, o feliz acontecimento chama a atenção do criminoso Partido Red, comandado pelo Duque Red.

Com isso, Dr. Lawton é chantageado por Red, sendo forçado a desenvolver um ser humano artificial com poderes incríveis. Temendo os fins para os quais o Partido Red poderá usar sua criação, o cientista destrói seu laborátório e foge com o humanoide, que batiza de Michi.

A partir daí inicia-se uma corrida para proteger Michi, que não sabe sobre sua verdadeira natureza, das garras do Partido Red; para isso, o detetive japonês Higeoyaji entrará em ação. Porém, no momento em que Michi descobrir sua verdadeira identidade uma mudança brusca ocorrerá, resultando numa revolta do humanoide contra a humanidade.

Tentarei dividir o texto em tópicos para abordar todos os pontos importantes, dos aspectos de criação à analise da obra; começando pelas referências, que chegam a ser um dos pilares na formação das obras posteriores de Tezuka.

-Origem da aventura: Publicação, referências e influências

E eis o Mikimaus waldisneus... LOL

De acordo com Tezuka, o projeto de Metropolis foi concebido como um projeto impactante e de qualidade superior às publicações das editoras de Osaka na época. Porém, o tempo relativamente curto levou o mangaká a optar por utilizar elementos de trabalhos não-publicados e combinar referências de diversas fontes. Sobre essas referências, vou apontar e comentá-las um pouco agora.

A primeira é a origem do título da obra e do personagem principal: Osamu baseou-se no filme Metropolis, de Fritz Lang, lançado em 1927; de acordo com o mangaká, ele apenas viu um pôster e uma cena estática do filme, cena que mostrava a criação de uma garota-robô; foi uma das bases para a concepção de Michi e para o uso do exército de robôs na história.

Há ainda outras referências na cultura e modo de vida ocidental: a cidade de Metrópolis é baseada nas cidades norte-americanas Manhattan e Chicago de antes da Segunda Guerra Mundial; a pequena florista e sua irmã mais velha são em parte baseadas em referências do livro Les Misérables, de Victor Hugo; até a presença de Sherlock Holmes e ratos mutantes idênticos a Mickey Mouse marcam aqui. E não nos esqueçamos dos poderes de voo e superforça de Michi, que vieram de inspiração pelos quadrinhos do Superman que na época começavam a chegar ao Japão. (Aliás, uma curiosidade: apesar de na época de Metropolis Tezuka não ter grande conhecimento sobre o herói americano, posteriormente ele se tornaria um grande fã do personagem e presidente do fã-clube japonês de Superman.)

A partir daí, há outras criações de Tezuka para a história que trariam influência a seus futuros trabalhos: Michi é o protótipo dos protagonistas de Astro Boy e A Princesa e o Cavaleiro, obras marcante do mangaká; sua representação pode ser discutida de uma forma ampla, mas deixarei para mais adiante. Outros personagens importantes marcam origem aqui, reaparecendo posteriormente em outras obras dentro do que Tezuka inaugurou como Star System (reaproveitamento de personagens em outras séries, com ocupações e até mesmo nomes diferentes - um exemplo de autores que de certa forma utilizam esse sistema atualmente é o grupo CLAMP).

Passada as apresentações de influências, vamos à história agora.

-Análise da obra (contém leves spoilers)

Kenichi realiza uma descoberta sobre Michi...

Antes de tudo, é importante falar sobre a edição da obra lançada pela Editora NewPOP aqui no Brasil: a meu ver, é praticamente impecável. O papel é de boa qualidade, a capa possui orelhas e a tradução não apresenta falhas. Talvez o preço seja um pouco elevado - R$ 24,90 - mas a qualidade realmente compensa.

Quem aqui é fã dos quadrinhos Disney levante a mão. Pois bem, quem levantou a mão provavelmente terá de cara empatia por Metropolis assim que abrir o mangá: o traço arredondado, simples e até caricato dos personagens lembra muito os traços dos quadrinhos Disney. Eu - que ainda por cima não conheço quase nada do Tezuka (momento confissão) -  particularmente quase me senti de volta à infância (como quem cresceu lendo clássicos da Disney que ainda resistem na estante aqui em casa...). Em termos de cenários, os quadros menores tendem a parecer "vazios"; porém, em quadros maiores Tezuka demonstra um grande nível de detalhes ao representar conglomerados de pessoas ou robôs e demonstra uma grande sensação de tridimensionalidade com os cenários; cenas como o marcante primeiro voo de Michi por Metrópolis são divertidas de se observar.

Mas comentemos um pouco da história agora. Apesar do traço "infantilizado", Metropolis é uma história que visa a um público juvenil e até adulto. Há uma boa dose de humor caricato e uma história densa e crítica a respeito da evolução da tecnologia e ciência na humanidade. Há uma boa dose de traições, espionagem e até assassinatos demonstrando intensamente a luta constante pelo poder da ciência - representado por Michi e suas habilidades sobre-humanas, que poderiam tornar-se poderosas armas. Com o enredo, Tezuka questiona o poder intenso do avanço científico-tecnológico, que colocado dentro de um conflito de interesses pode causar mais danos do que benefícios à sociedade.

No geral, Metropolis é uma história dinâmica que prende do começo ao fim; porém, há momentos em que essa história densa é executada de forma que pode parecer rápida demais: não há um método para demonstrar a transição de cenas e em alguns poucos momentos pode haver confusão durante as passagens de tempo.

Revolução: os seres artificiais contra Metropolis

Porém, dentro da discussão científica Tezuka consegue inserir também questões de individualidade e relacionamentos sociais, com um peso psicológico que não deve ser desprezado. Com Michi, o mangaká cria uma figura que não conhece a verdadeira identidade e é transmitida ao leitor sempre a partir do indeciso ponto de vista das pessoas que o cercam, que estão despreparadas para receber sua natureza extraordinária.

Pode-se dizer que Michi é um ser assexuado (daí o "ponto de partida" para a androginia em A Princesa e o Cavaleiro), que pode ter seu gênero alterado a partir de um botão em sua garganta; o que não é de conhecimento público e causa confusões em classíficá-lo como garota ou garoto. O dito botão pode ser visto como uma metáfora de que Michi, que na maior parte do tempo tem como aparência masculina a imagem de um garoto com rosto mais afeminado e como forma feminina a imagem de uma garota delicada, pode ser do gênero em que a sociedade, despreparada para um ser diferente como ele, prefere classificá-lo.

E falando em ele ser alguém "diferente", há um outro ponto curioso na história: no momento em que descobre sua verdadeira identidade, no navio do Duque Red, Michi alia-se aos robôs dizendo "vocês também são seres artificiais? Eu sou um de vocês!"; a questão é que Michi é um ser artificial no sentido de ser gerado a partir de células sintéticas, não por ter a composição de uma máquina. Assim é possível sentir que o próprio Michi, incapaz de classificar sua condição, igualou-se ao exército de robôs que também estava sob opressão. E há outras implicações de tom social: a revolta dos seres artificiais é a revolta dos subjugados pelo sistema - mas que, ao invés de fazer algo para melhorá-lo, apenas empenham-se na vingança para aplicar o mesmo sistema aos que dominaram-nos.

-Conclusão

Metropolis não é considerada uma das melhores obras de Osamu Tezuka, mas sua existência mostrou-se base para suas futuras criações. É claro que é um mangá um pouco distante dos padrões aos quais estamos acostumados hoje, mas acreditem, há muito mais história sendo contada em suas 160 páginas do que muitos one-shots conseguem realizar atualmente; o tema científico abordado é contemporâneo, um grande alerta aos perigos do poder científico em mãos erradas a partir da trágica história de Michi, e as pequenas abordagens envolvendo questões de identidade em relação à sociedade são pertinentes; porém, para alguns o teor mais infantilizado da narrativa e da arte pode ser um "bloqueio" durante a leitura.

Para quem quiser comprar o mangá, a versão da NewPOP está disponível na Loja Comix.

E fica por aqui o artigo sobre Metropolis. But wait, vocês não vão conferir o restante do #TezukaDay? Pois não se esqueçam da Fanpage no Facebook com todos os detalhes do evento; quem ainda não conferiu pode acessar clicando [aqui]. E vou aproveitar e fazer também algumas indicações pessoais de alguns textos participantes.

Simplicidade, Otimismo e Fantasia – O mundo de Osamu Tezuka: post abrangente do Troca Equivalente sobre o contexto envolvendo os trabalhos de Osamu Tezuka;

A influência do pop americano na obra de Osamu Tezuka: texto do blog Otakismo, aprofundando e analisando a influência da cultura pop americana nas obras de Tezuka;

Osamu Tezuka, o Pai do Anime: comentando a importância de Osamu Tezuka nas origem da animação japonesa, ótimo texto do Nahel Argama;

Barbara: O Lado Perverso e Doentio da Mente Humana: análise sobre Barbara, obra intrigante do mangaká, no Elfen Lied Brasil;

Pluto, o Astro Boy de Naoki Urasawa: review de Pluto, mangá do autor Naoki Urasawa que reconstrói um famoso arco de Astro Boy, no Chuva de Nanquim;

Astro Boy, o estudo de um fóssil: texto do Subete Animes comparando os significados de Astro Boy e Pluto.

Os outros artigos do evento - todos excelentes, importante ressaltar - podem ser encontrados na fanpage.
E agora aproveitem o Tezuka Day. Agradeço a atenção por mais um artigo, e até a próxima!



3 comentários:

  1. Teu post alegrou mais ainda o meu #TezukaDay .

    Seu talento é indescritível, fazendo nós (leitores) viajarmos nas idéias apresentadas. Recomendo que se empregue na carreira da escrita, seja como escritora ou jornalista.

    Post muito bom, que me fez "sentir" o mangá em questão -_-

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  2. Seu post ficou ótimo, Mary, tomara que mais pessoas possam vir a lê-lo. Escrita fluente e gostosa e um bom uso de palavras na descrição.

    Quando eu peguei Metropolis, o que me atraiu foi justamente essa maravilhosa disposição de ideias, que mais tarde em suas outras obras, Tezuka teria um resultado bem melhor. A dinâmica de Metropolis talvez seja o pior inimigo da série. Pensava também em fazer uma analise bem abrangente, ressaltando os pontos em comum dos três Metropolis e falando um pouco sobre cada um. Acho que outra pessoa que pegou Metropolis além de você ia fazer isso (ainda não terminei de ler todo o Tezuka day).

    Enfim, obrigado por mim linkar. Farei o mesmo pois adorei o seu post.

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  3. Ohayou!

    Em Metropolis há uma reflexão de como o homem,um ser inventivo e racional,parece nunca estar preparado e nem pré-disposto a se adequar as condições do presente e muito menos ao futuro cada vez mais tecnólogico.
    A obra é um ensaio,um experimento,um tipo de previsão apocalíptica de um futuro não tão distante.É interessante também salientar que os robôs também não tem um perspectiva amadurecida e agem com a vingança própria de "seus mestres".
    Aparentemente "muito infantilóide" esta obra de Tezuka garante pontuações para muitas direções e ele acabou percebendo isto.
    Quanto ao post,é elogiável a fluência com que seu texto quase "em tópicos" foi preenchendo as lacunas das ideias que vinham surgindo sobre um tema que ia se aprofundando.

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